João Vinhas Ferreira João Vinhas Ferreira

A Lei dos Solos é um erro de diagnóstico.

Não sou inimigo do livre-mercado, nem das necessidades legítimas das construtoras e imobiliárias portuguesas, muito pelo contrário. Mas julgo que o direito para um qualquer fundiário especular o potencial de um solo rústico não se deve sobrepôr aos restantes cidadãos.

Consctruction in Lisbon

Soube-se hoje que o PS e o PSD aprovaram na especialidade a maioria das alterações à Lei dos Solos, cuja lei já vigorava por decreto. As alterações prendem-se com o aspecto inicialmente introduzido de “valor moderado”, destinando o processo simplificado de conversão de solo rústico em urbano apenas para habitação pública ou destinadas ao arrendamento acessível ou a custos moderados.

Sendo eu militante do Partido Socialista, apresento-me como dissidente, e naturalmente insatisfeito pela decisão tomada pelo meu partido no momento de votar a proposta de revogação do decreto no Parlamento, que ao abster-se viabilizou a continuidade da mesma. Pois agora a mudança da lei na especialidade, muito embora seja benéfica para evitar o caos total no que ao ordenamento do território diz respeito, não será a solução que procuramos para resolver o problema da falta de habitação a preços acessíveis para a classe média. É um terrível erro de diagnóstico.

Os especialistas em urbanismo e coesão territorial têm vindo a alertar para os factos: Em primeiro lugar, existe atualmente em Portugal solo urbano disponível para albergar a totalidade da população, existindo somente em casos pontuais, municípios onde a área urbana esteja quase totalmente ocupada. Fica anulado à partida o argumento de que não existe espaço para todos. Em segundo lugar, o INE revelava em 2021 a existência de 154.075 alojamentos vagos para venda ou arrendamento sem necessidade de reparações ou com necessidade de reparações ligeiras, e se falarmos do valor total de habitações para venda e arrendamento vazios o valor é ainda maior: 348.097. A conclusão geral do INE nessa altura era que havia mais casas prontas para vender ou arrendar (sem precisar de obras) do que carências habitacionais, havendo mesmo um excedente de cerca de 17 mil habitações. O cenário em 2025 não deverá fugir de forma significativa ao de há três anos.

Não sou inimigo do livre-mercado, nem das necessidades legítimas das construtoras e imobiliárias portuguesas, muito pelo contrário. O custo da mão-de-obra e dos materiais subiu meteoricamente e isso certamente afecta as margens deste tipo de negócios, que movimentam a economia e desenvolvem o nosso território. Mas acredito que o Estado escusa-se, com a introdução desta lei, do dever constitucional de ordenar o território consagrado no artigo 9º do documento fundador da República. Particularmente, no que à habitação diz respeito, o artigo 65º especifica os deveres do estado de ordenação territorial para assegurar o direito universal à habitação.

Nesta matéria o Estado sempre se mostrou muito fragilizado para promover uma política universal de ordenamento do território: as CCDR e os municípios não possuem recursos humanos e técnicos para cumprirem efetivamente esta missão. A coordenação das entidades das quais pareceres são necessários para a construção, tais como a APA e o ICNF com as restantes assemelha-se a uma guerrilha, perdidos num atirar de culpas da morosidade destas aprovações. Diga-se também que os recursos verdadeiramente técnicos residem nestas últimas duas, tendo as CCDR em muitos casos dentro das suas portas agentes políticos que apesar do seu melhor trabalho com o conhecimento que têm, é infelizmente pouco para pensar num plano-mestre para as regiões, para Portugal, e pensar e resolver o problema da habitação.

Este processo simplificado delega nos municípios a autoridade da conversão simplificada. Certamente iremos ver muito brevemente uma imensidão de processos destes aprovados em Assembleias Municipais espalhadas pelo país. Ficam as questões: terão as Assembleias Municipais capacidade técnica e competência para definir se um solo tem qualidade e condições para ser convertido em solo urbano? O que resultará se a conversão destes solos resultar num prejuízo para os promotores imobiliários e novos moderadores instalados nestes solos?

Se por um lado não existe propriamente a necessidade de mais solo urbano, se por outro temos habitações vazias, esta lei pressupõe que o mero aumento da oferta de habitações para a classe média irá resolver o problema. Com o êxodo das populações da periferia para os centros urbanos, que dispõem de bastantes fogos desabitados e onde o solo para construção é escasso, como será isto possível sem transformar a cidade numa selva urbana, sem qualidade de vida, espaços verdes e deambulantes, e até sem infraestrutura para transporte coletivo?

Os casos de conflito de interesse dentro do Governo que colidem directamente com a elaboração desta lei deixam ainda mais questões. Iremos conhecer, e certamente já se conhecerão casos de solos rurais recentemente vendidos por valores que representam múltiplos daquele que era o seu valor antes de se falar na concepção desta lei. E tudo isto faz-me lançar a verdadeira e última questão: Quem será o grande beneficiário deste regime simplificado? O construtor terá de pagar o mesmo pela mão-de-obra e pelos materiais, o agente imobiliário irá vender o imóvel por um preço que lhe permita manter margens similares às já praticadas, o senhorio idem. Tudo isto leva-me a concluir que o verdadeiro beneficiário será o indivíduo que nesta janela de oportunidade comprou os solos rústicos mais apelativos, para os vender assim que a sua conversão seja concretizada.

Refugiar-se-ão muitos na opinião de que é o preço a pagar para aumentar a oferta habitacional em Portugal. Não é possível acreditar que não existam soluções melhores e que beneficiem os agentes que realmente importam: as pessoas, as famílias e os territórios. Temos, aliás, a grande maioria dos especialistas a alertar que não só o problema da habitação não ficará resolvido com esta lei, bem como contribuirá para a degradação do ordenamento do território. Pelo contrário, julgo que o direito para um qualquer fundiário especular o potencial de um solo rústico não se deve sobrepôr aos restantes direitos constitucionais, e calculo que será esta a opinião da grande maioria dos portugueses.

Qualquer um de nós ficaria insatisfeito se fosse ao hospital com uma ferida aberta e o cirurgião fizesse uma sutura a trinta centímetros da mesma. Temo que esta lei seja análoga para o problema da habitação. Se não acertarmos o diagnóstico dificilmente encontraremos a cura para esta questão, que é central e prioritária para os jovens do nosso país. Falta-nos capacidade técnica nos organismos de decisão, falta vontade para pôr as soluções que funcionam em prática e falta um plano-mestre centralizado para o nosso território, que se arrisca a tornar uma megalópole do Litoral, fragmentada pelas vontades distintas de cada município, com todos os prejuízos económicos, sociais e ambientais que isso acarretará.